Em tempos de euforia, uma boa reflexão sobre o futebol e a sociedade.
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http://www.outraspalavras.net/2012/04/01/por-que-o-futebol-negocio-quer-proibir-as-torcidas/
Por trás do “combate à violência” há tentativa de elitizar estádios, afastando torcedores pobre – os novos “indesejáveis”
Por Irlan Simões*, em Futebol além da mercadoria
Foi logo na tarde da segunda-feira, 26/3. A Federação Paulista de Futebol (FPF) lançou a Resolução 66/2012, proibindo a entrada
de duas torcidas organizadas nos estádios. Mais precisamente a Gaviões
da Fiel, ligada ao Corinthians e a Mancha Alviverde, do Palmeiras.
A
motivação foi o confronto entre integrantes das duas torcidas, ocorrido
às 10h da véspera, dia em que acontecera o maior clássico paulista. A
confusão causou a morte, até o momento, de dois integrantes da Mancha
Alviverde. André Alves Lezo, de 21 anos, faleceu ainda no domingo, ao
ser atingido por um tiro na cabeça. Na terça-feira foi confirmada a
morte cerebral de Guilherme Vinicius Jovanelli Moreira, de 19 anos.
Alguns
meios de comunicação afirmaram que os assassinatos são decorrentes de
um ato de vingança pela morte do integrante da Gaviões da Fiel, Douglas
Karim Silva, em 29 de Agosto de 2011.
Retomemos
os parágrafos anteriores, nos são apontados dia, horário, local e
motivação do confronto. A partir deles, façamos uma análise do que
significou o ocorrido, no contexto geral do futebol.
O
domingo, 25 de março, era marcado por um dos maiores clássicos do
futebol brasileiro, Corinthians x Palmeiras, valendo a liderança do
campeonato paulista. Contaria, obviamente, com a presença de duas das
maiores e mais agressivas torcidas organizadas do país. Rivais
históricos há muitos anos, é claro que estariam mobilizados e fardados
para a ocasião.
A
“Batalha da Inajar de Souza” aconteceu às 10h da manhã. Cerca de seis
horas antes do horário oficial do jogo, quando nem o aparato técnico da
Rede Globo devia estar presente no estádio.
A avenida Inajar de Souza fica na Zona Norte de São Paulo, a 13 km do palco do clássico, o Pacaembu. Um
local distante o suficiente do estádio para que não houvesse
concentração de torcedores a pé. Mesmo assim, é local recorrente de
confrontos entre os grupos, conhecido da Policia Militar, informado há
bom tempo pelas próprias lideranças das torcidas organizadas.
Conflito entre “organizadas” independe dos jogos.
Brigas não são casuais, mas confrontos combinados,
tratados como evento histórico pelos integrantes das torcidas
A
motivação da briga foi uma retaliação já escancarada em todas as redes
sociais. Basta pesquisar um pouco para encontrar citações sobre a
possibilidade do confronto, ressaltando inclusive o sentimento de
vingança por parte dos integrantes da Gaviões da Fiel. No último
confronto, marcado na própria internet, os corintianos alegam que os
torcedores rivais não seguiram as “regras” esperadas para os conflitos,
matando um adversário.
Diante
dos elementos expostos acima, o que é possível concluir? Que o conflito
entre torcidas organizadas independe dos jogos. As brigas não são
casuais, nem obra da insanidade desses jovens que se prestam a se
agredir em plena luz do dia. São confrontos combinados, tratados como
evento histórico pelos integrantes das torcidas organizadas.
Estas,
por sua vez, não possuem uma estrutura organizativa que lhes permita
planejar tais enfrentamentos, nem centralizar ou controlar a ação dos
seus integrantes. São formadas por núcleos descentralizados e sem
hierarquia, que podem articular suas ações independentes do que avaliam
os dirigentes do grupo.
Os
confrontos físicos são desejados por parte desses integrantes. É uma
atividade que lhes dá ânimo e prazer. Viajam centenas, às vezes milhares
de quilômetros para outras cidades, uniformizados, esperando uma
torcida adversária buscar confusão.
Se
isso é certo ou errado, cabe a cada um escolher. A realidade é que não é
um problema de fácil solução, nem qualquer medida punitiva que vai
acabar com as torcidas organizadas. Ou, pelo menos, com seus integrantes
violentos. Inclusive pela pluralidade dos setores envolvidos nesses
grupos mais violentos.
É
isso que nos permite afirmar, sobre a imprensa esportiva brasileira: ou
lhe falta clareza sobre o funcionamento das torcidas organizadas, ou
não tem honestidade intelectual e disposição para investigar as relações
promíscuas entre o futebol e certos interesses privados. A segunda
hipótese parece mais provável.
A
FPF sustenta que puniu Gaviões e Mancha Verde com base no Estatuto do
Torcedor, uma lei que sofre críticas generalizadas tanto por parte das
torcidas quando dos movimentos que querem resgatar o futebol. Ele
eliminou diversos direitos dos que assistem às partidas nos estádios, e
não impede, por exemplo, que os preços dos ingressos sejam cada vez mais
proibitivos – nem que as antigas áreas populares tenham sido
suprimidas. Nos últimos anos, mesmo pagando cada vez mais caro para
poder assistir ao seu time de coração, os brasileiros foram confrontados
com uma sequencia de ataques à sua cultura torcedora.
Viabilização do modelo inclui restringir torcedor “indesejado”.
No Rio de Janeiro, polícia instrui as empresas de ônibus
a diminuir suas frotas, em dias de jogos
Entre
elas, estão a restrição do uso de faixas e bandeiras com mensagens de
qualquer ordem; a proibição ao consumo de bebidas alcoólicas; o
cadastramento obrigatório de torcedores e até a obrigação de assistir ao
jogo sentado.
A
situação só piora quando a FPF declara que reagiu a um pedido da
Delegacia de Polícia de Repressão aos Crimes Raciais e Delitos de
Intolerância. Essa informação ganha contornos de uma grande piada,
quando analisamos qual a origem dessa concepção de “segurança nos
estádios”.
A
política de segurança para grandes jogos, criada pela Polícia Militar e
pelos órgãos do Estado que incidem sobre futebol, foi construída nas
últimas décadas com o apoio da grande mídia e da cartolagem. As medidas
tomadas e as regras criadas coincidem com o que prega a cartilha de um
certo programa político para o “futebol” em todo o mundo.
Trata-se
de mercantilizar cada vez mais o esporte, estabelecendo a lógica de
“consumo do espetáculo”. Os clubes passam a potencializar suas fontes de
renda, a se rentabilizar de forma agressiva. Isso inclui o aumento do
valor dos ingressos, numa perspectiva totalmente equivocada dadas as
condições sócio-econômicas do país.
Os estádios vão se convertendo gradativamente em centros de consumo, verdadeiros shoppings centers, elitizados e higienizados. A busca do “público ideal” também sofre mudanças.
A
viabilização desse modelo exige das federações, dos clubes e do Estado
diversas medidas de restrição da entrada de torcedores “indesejados”. O
caráter anti-popular de algumas destas regras é escancarado. No Rio de
Janeiro, o Grupo Especial de Policiamento nos Estádios (GEPE) instrui as
empresas de ônibus a diminuir, em dias de jogos, suas frotas, nas regiões próximas a estádios.
A
implantação deste já está muito avançada em países da Europa e revela o
possível futuro do futebol brasileiro, caso não haja resistência:
público assistente composto majoritariamente pela alta classe-média,
torcedores com mais de 30 anos e turistas.
Exclui-se
o antigo torcedor trabalhador de outros tempos, de baixo poder
aquisitivo, que lotou estádios e garantiu por décadas a renda dos
clubes. Segundo a ideologia do “futebol-negócio”, a ele restará apenas,
para acompanhar seu clube querido, o boteco da esquina.
Mas, como evitar esses “indesejados” sem que isso gere grandes discussões? Fácil: colocando em cena um bode expiatório.
Diante da ofensiva dos partidários do futebol-negócio,
lideranças de torcidas poderiam exercer papel
de resistência – mas se omitem
Pode
ser até que houvesse boas intenções, por parte dos idealizadores das
primeiras medidas contra a violência nos estádios brasileiros. Algumas
delas são inclusive defendidas por representantes de setores
progressistas da sociedade, que não compram cegamente a velha ideologia
da vigilância e punição.
O
problema é que, aos poucos, o “combate à violência” tornou-se apenas
mais um engodo na carta de justificativas de quem pretende consolidar o
futebol-negócio no Brasil. Não é de hoje que esse argumento é usado de
forma oportunista.
As
bandeiras já foram proibidas em São Paulo em 1994, no vácuo do
confronto entre palmeirenses e sampaulinos no Pacaembu, num jogo de
juniores. O episódio foi marcado pela displicência dos órgãos
responsáveis, que permitiram um jogo entre torcidas rivais num estádio
em reforma, com materiais de construção expostos e o acesso ao gramado
desprotegido.
As
bebidas alcoólicas foram vetadas em 2009, novamente sob o argumento de
que contribuíam com a violência. Quem frequenta estádios sabe que não
faz o menor sentido. Mas o mais grotesco é que hoje, quando o tema volta
a ser debatido, é em nome do “direito à comercialização” das marcas
patrocinadoras da Copa – não da liberdade individual do torcedor, que
não está autorizado a levar sua cervejinha para o estádio.
A
Mancha Alviverde já mudou de nome uma vez, e provavelmente vai mudar de
novo. A torcida Gaviões da Fiel é um instrumento político do atual
grupo dirigente do Corinthians. Será muito difícil mantê-la proibida por
muito tempo. Da mesma forma que a proibição de adereços alusivos às
torcidas não muda nada. Ou só piora: as torcidas organizadas estarão
ainda mais presentes nos estádios – e agora, não identificadas.
A
proibição, como se viu, é hipócrita e interesseira. Mas vale, diante da
ofensiva dos partidários do futebol-negócio, chamar atenção para o
papel que as lideranças de torcidas organizadas poderiam exercer – mas
se omitem. Mesmo com os diversos alertas lançados nos últimos anos, elas
muito pouco fizeram para impedir as medidas coercitivas.
Às
vésperas da Copa do Mundo no Brasil, e num momento decisivo para
definição dos rumos do futebol no país, elas não agem diante da
mercantilização. No máximo, adotam as respeitáveis, mas pouco
convincentes, iniciativas de criação de “Grupos de Ação Social”.
Os
órgãos punitivos tampouco se dão ao trabalho de investigar ou apontar
quem financia as torcidas organizadas. Já se sabe há anos que diversos
cartolas injetam recursos materiais e as usam como instrumento de
promoção política pessoal, dentro e fora dos estádios.
É
responsabilidade crucial dos integrantes mais sérios das torcidas –
aqueles que pensam na magia do jogo e nos direitos do torcedor – trazer
uma nova “ideologia” a estes grupos. Transformá-las, para garantir que
estejam do lado do torcedor na batalha contra a mercantilização do
esporte.
–
*Irlan Simões é estudante de Comunicação
Social e torcedor do Esporte Clube Vitória. Atua no Movimento Somos Mais
Vitória, na Associação Nacional dos Torcedores, na Executiva Nacional
dos Estudantes de Comunicação Social e acha que o futebol deve ser
jogador pela ala esquerda.